Maria João Santos Ferreira: Fortalecer as Heranças Culturais
Maria João é famosa pela sua entrega à investigação académica relacionada com a gastronomia macaense, como este jornal, em devido tempo, destacou. Aqui e agora, embora, necessariamente, se fale dos seus trabalhos sobre “petisquera saboroso di Macau”, a entrevistada, com apelido de ilustre família macaense, Santos Ferreira, e assumida “maria-rapaz” na adolescência, conta-nos algumas histórias com outros sabores, evoca velhas amizades, e apela maior atenção ao que considera o “desenvolvimento do turismo cultural e imaterial de Macau”
Helder Fernando
Desta terra natal, segue com 16 anos para Lisboa onde completa o liceu, primeiro no “Rainha D. Leonor”, depois no D. Filipa de Lencastre, até seguir estudos superiores. A famosa “licença graciosa” dos pais – uma professora de Matemática e um professor de Educação Física – facilitava este e outros tipos de opções que, bem aproveitados, podiam valorizar o conhecimento: “a minha irmã Fátima, estava lá, já com o curso liceal feito e no início do curso superior, foi a minha vez de também ficar, uma vez que em Macau não existia universidade”.
Inicialmente, quase tudo foi estranho: “desde logo o facto de vir de um liceu misto, raparigas e rapazes, como era o Liceu Nacional Infante D. Henrique, para um ensino que separava os géneros, tinha controlo horrível, por parte das funcionárias, sobre as estudantes, até havia corredores por onde não podíamos passar, era exclusivo dos professores. Uma situação medonha, para mim, eram coisas de outro mundo, principalmente no D. Leonor. No Filipa já foi um pouco melhor ou eu já estava mais calejada”.
Segunda de sete irmãos, Maria João formou-se em Filologia Germânica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Os tempos não estavam fáceis para quem tivesse real vontade de estudar e nada mais.
“Viviam-se tempos de grande contestação estudantil em 1968/69. As associações de estudantes agitavam tudo. Para mim, a questão política era um mundo novo, nem hoje me considero muito politizada”. Recorda vários acontecimentos no âmbito universitário: “Um dia, estava a estudar na Biblioteca, um dos raros lugares mais sossegados, quando oiço um enorme sururu “vêm aí, vêm aí!!”. Fui espreitar, claro, era a polícia com os cães. Escondi-me numa casa de banho, onde ouvia os gritos. Só saí quando tudo serenou.
Entretanto, Maria João casa em Setembro de 1973, ainda antes de terminar o curso. Fez contas e concluiu que a sua primeira filha nasceria em plena época de exames. Optou por interromper os estudos: “Uma má decisão, pois com o 25 de Abril, aconteceram imensas passagens administrativas”. Na sequência da revolução dos cravos, era tremenda a agitação académica: “estávamos nas aulas quase totalmente controlados por colegas, cheguei a ter disciplinas em que as notas eram votadas de braço no ar, inclusivamente as decisões de passar ou chumbar. Muitos professores funcionavam como autênticos palhaços, pois alguns era perseguidos. Uma vez, por ter sido operada ao nariz, faltei algum tempo a determinada disciplina. Já restabelecida, fui falar com a professora, avisando que ía voltar às aulas; respondeu-me que por ela tudo bem, mas tinha de pedir licença à turma. Obviamente recusei, eu estava tendo uma atitude civilizada e correcta, não podia tolerar que o meu aproveitamento dependesse de qualquer militância política ou partidária, ou mesmo de agrados pessoais”.
Primeiro emprego nos CTT, centro de documentação. Isso motivou uma série de cursos que a levou à posição de bibliotecária. Pelos finais de 1990, requisitada por Macau, para comissão de serviço como técnica superior. Começou por estar cerca de meio ano nos Serviços de Obras Públicas locais. Nas memórias, esta observação: “Achei tanta coisa diferente por aqui, desde 1966, quando fui para Portugal”. Embora esporadicamente viesse a Macau de férias, não era, então, nítido o seu olhar sobre esta terra: “Foi um choque. Uma coisa é vir de férias, outra é vivermos cá. Senti algumas… digamos que fricções, por parte de várias pessoas. Não direi inveja, mas talvez um grande desconforto entre alguns macaenses – “então esta esteve tanto tempo fora, e agora vem com uma categoria superior à nossa”. Lembro-me que disse a uma pessoa, olha, não tenho culpa de ter obtido um curso superior, não estou como funcionária do quadro local, quando terminar a comissão de serviço vou embora, não faço sombra a ninguém, nem a avaliação de serviço influencia a minha carreira em Portugal, até porque não sou funcionária publica, os CTT são uma empresa pública, mas distanciada do quadro do funcionalismo”.
Algumas naturais diferenças de mentalidades e rotinas entre distintas comunidades de cá e de lá, reflexo de diferentes influências, acompanhando as mudanças políticas e administrativas, suscita algum grau de curiosidade a Maria João, também do ponto de vista académico: “antropologicamente, poder ser um bom tema de estudo. A minha irmã Fátima, na minha ausência guarda-me religiosamente todos os jornais de Macau que, quando volto, leio e recorto os artigos que interessam à minha área de estudo. Noto que hoje as pessoas se envolvem no bem comum, são mais participativas, têm a sua opinião”.
Nas Obras Públicas, Maria João notou aquilo a que chama “espartilho burocrático”, incluindo a aplicação da “lei dos cônjuges”, pois demorava demasiado a colocação do marido, que em Portugal era director financeiro e administrativo de Filmes Castelo Lopes. “Em Macau vim encontrar rotinas muito diferentes e a que não estava habituada, a ponto de me sentir emigrante na minha própria terra”, recorda, hoje, de sorriso aberto, e à mesa de um café no centro de Macau, em mais uma das suas temporadas na região. Posteriormente trabalhou no Fundo de Pensões até 1993, altura em que regressa aos CTT em Lisboa, na fase da “convulsão no auge, com a separação correios de um lado e telecomunicações do outro, fui para as telecomunicações, mas em Dezembro desse ano rescindiram-me o contrato, como prenda de Natal”.
Intervalo de 10 anos “com trabalho, mas sem emprego”, em que várias coisas aconteceram, inclusivamente ficar viúva. Com a perda de documentação que provava as habilitações académicas, circunstância que, na época, prejudicou bastantes pessoas, como é público, teve de repetir nove cadeiras que já tinha ultrapassado.
Acompanhava à distancia o que sucedia em Macau, através de telefonemas e por cartas. Redes sociais ainda ninguém sabia o que viriam a ser tais coisas. Havia a vontade em conviver, criar dinâmicas. É quando uma macaense amiga, Virgínia Badaroco, tem a ideia da criação do PCB, Partido dos Comes e Bebes: “Duas ou três vezes por ano alugávamos o anexo da Casa de Macau, nas imediações do aeroporto, fazendo lá as nossas confraternizações onde cada um levava um petisco, quem não levasse contribuía com ajuda financeira. Era muito agradável, chegávamos a ser mais de 100 convivas. Hoje é um pouco diferente, marcamos um salão num restaurante que chega a ficar por nossa conta”.
Na leitura que Maria João Santos Ferreira faz destas tertúlias, “elas são alegres, recordamos histórias vividas por cada uma de nós, quando éramos mais novas, lembramos acontecimentos engraçados, mas também pessoas amigas que já partiram, mas permanecem na nossa melhor memória, enfim a vida em Macau por essa época. Pode ser que seja saudosismo”. Neste ponto. Evoca amizades, muitas delas com quem se encontra ciclicamente: “a Lurdes Machado, o Roberto, a Regina Alves, o Manuel Alves, o Zé Boiol, a Clara Azedo, a Leonor Xavier, as nossas tertúlias são sempre uma festa”.
Medida prioritária para Macau, menciona a necessidade de maior “incremento do turismo cultural e imaterial, tentando fortalecer as pontes entre costumes e hábitos diferentes, afinal a maior herança cultural da minha querida terra. Destaco o contributo dado pelo Miguel Senna Fernandes e o Grupo Dóci Papiaçám di Macau, para manter acesa uma certa cultura macaense, é um buraquinho que se tapa”.
Sempre assumindo com orgulho a condição macaense, Maria João sente-se dividida entre esta sua terra natal e Portugal, onde vive a maior parte do tempo. Sendo que é por Macau que se debruça com o maior afecto e com o maior empenho académico. Autora de dois livros sobre culinária de Macau, presentemente constrói a já mencionada tese “A Gastronomia no Turismo Cultural de Macau”, porventura caso único mundialmente, tendo como orientadora Inês de Ornellas e Castro.
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