COMO “CAÍ” NOS AÇORES ... (parte I)
Num certo dia do longínquo ano de 1967, recebi do Comando Territorial Independente de Macau uma convocação para ali me apresentar a fim de regularizar a minha situação referente ao recrutamento militar. Apresentei-me na data indicada e fui então informado
de que tinha de estar em Portugal em princípios de Outubro num determinado quartel situado na Ajuda, Lisboa, a fim de participar no COM (Curso de Oficial Miliciano), ministrado em Mafra. Acto contínuo, recebi a competente Guia de Marcha.
Intimamente, tanto eu como a minha família sabíamos de antemão o resultado da convocação ao referido Comando. Quando regressei à casa, a minha família recebeu a esperada notícia com alguma naturalidade, notando-se embora algum nervosismo e preocupação, principalmente da parte da minha querida mãe que já tinha visto partir há bem pouco tempo a Anabela, minha irmã, para Lisboa a fim de prosseguir os seus estudos na Universidade de Lisboa.
Segui sozinho em princípios de Outubro para Lisboa, via Hong Kong. Na antiga Ponte-cais do Porto Exterior estiveram amigos, colegas de trabalho e até amigos dos meus pais. Até então não conhecia as emoções provocadas por uma despedida “a sério” que poderia, na pior das hipóteses, ser a última de Macau.
Iniciava então a minha segunda viagem a Portugal que tinha visitado em 1964 na companhia do Alfredo Ritchie (médico reformado e hoje meu cunhado) para estarmos presentes como representantes de Macau num Encontro organizado pela Mocidade Portuguesa, com a participação de jovens de todo o antigo Ultramar. Data dessa altura a 1ª oportunidade de percorrer o País em dois meses.
Apresentado no quartel da Ajuda, segui no mesmo dia de comboio para Mafra, concretamente para as traseiras da sua majestosa Basílica, onde ficava a EPI (Escola Prática de Infantaria), que passou desde então a ser a minha casa durante os próximos seis meses de instrução militar: sensivelmente três meses de instrução básica e outros três destinados à especialidade. Lembro-me sobremaneira dos fins de semana que então passava na Ericeira, Amadora e Lisboa.
O mundo é realmente pequeno. Passados poucos dias e para grande espanto meu, cruzei-me em Mafra com o conterrâneo Henrique Nolasco da Silva (“Ricky”). Maior ainda foi o nosso espanto quando soubemos que estávamos integrados na mesma Companhia embora em Pelotões diferentes. Foi ele o 1º macaense que encontrei na minha vida militar. Mais tarde, outros dois apareceram quando menos esperava. Mas essa é outra história.
Durante a estadia na EPI, aprendemos um pouco de tudo: desde conhecimentos militares e sobrevivência até à condução de homens, sem esquecer os exercícios físicos que exigiam de nós aturados esforços e sacrifícios.
Hoje, as recordações são mais que muitas. Depois do pequeno almoço, nos dias de semana reunimo-nos em aulas teóricas e práticas na Escola e nos seus arredores, especialmente na enorme Tapada de Mafra onde se situavam a “Aldeia dos Macacos” (para exercícios físicos) e a carreira de tiro – armas ligeiras e pesadas. As quase intermináveis marchas e os longos “crosses” que fazíamos muitas vezes em condições meteorológicas adversas com uma arma ao ombro que ora era uma Mauser ora uma G-3, e com uma munição real na câmara nos exercícios finais. Os “passeios” diurnos e sobretudo os nocturnos que começavam quando éramos acordados subitamente por uma ordem transmitida por um alto-falante e tínhamos de nos apresentar minutos depois devidamente equipados e armados num certo local para sermos transportados em viaturas militares e largados em sítios desconhecidos apenas com um mapa e uma bússola, com a indicação de que nos queriam ver à hora do pequeno almoço no quartel, passeios esses realizados por estradas, montes e vales na região de Mafra-Torres Vedras. O rigoroso inverno vivido em Mafra, a humidade que cobria as espessas paredes do Quartel, a água fria (para não dizer, gelada) que de repente saía das torneiras quando todo ensaboado se estava no banho... etc. Coincidências? Nós, pobres cadetes, tínhamos noção de que tudo o que sucedia não era por acaso mas fazia parte da nossa formação, sujeitando-nos a todo o tipo de provações e de que isso contribuía na nossa mentalização para situações inesperadas e bem piores num teatro de operações militares em algumas (antigas) províncias ultramarinas, como Angola, Moçambique e Guiné. Como era natural, os cadetes provinham de diversas zonas do País, não se conheciam anteriormente e tinham formação académica/comportamentos diferentes. Mas porque todos nós “estávamos no mesmo barco”, passámos com o tempo a criar muito naturalmente uma sâ camaradagem, ajudando-se mutuamente nas tarefas colectivas. Daí nasceu até uma certa amizade entre muitos, tão visível na hora da despedida.
Casos dignos de registo:
Entre os meus camaradas, encontrava-se um, de apelido R..., que curiosamente tinha feições orientais. Era tratado entre nós como o “Vietcong”. Ele não se ralava com o facto e jurava a pés juntos que não sabia porque tinha “aquela cara” e que tanto quanto sabia nunca tivera na sua família alguém de ascendência oriental. Partiu a coronha duma Mauser num dos nossos “devaneios nocturnos” quando tentava saltar um muro de pedras no meio da escuridão da noite.
Um outro camarada, de nome J..., lisboeta, com ares de filho de gente fina, era vítima preferencial das nossas brincadeiras. Na caserna, nunca encontrava a sua cama em condições para nela se deitar: ou porque os lençóis estavam dobrados a meio entre a cama e os cobertores, o que não lhe permitia estender os pés, não tinha cobertores ou fronhas ou ainda ambos, ou tinha sal ou açúcar entre os lençóis e cobertores, etc. Para ele, ir para a cama foi sempre um pesadelo! No fundo, ele sabia que não havia maldade nem má intenção nessas partidas e até certo ponto aceitava ser o “bobo da festa”.
Havia ainda um outro, de apelido M..., de Coimbra, muito brincalhão e que tinha sido campeão nacional na categoria de juniores, se bem me recordo em lançamento de peso. Era o chefe que arquitectava as partidas para “chagar” o mencionado camarada J. Na sala das refeições, sentavam-se oito cadetes em cada mesa rectangular. Diariamente, um dos cadetes estava de serviço: servia os restantes num determinado sentido da mesa, antes de se servir. Acontece, porém que, por força da ordem numérica atribuída a cada um de nós, ao J... ( “o menino bonito”) calhou ficar na mesma mesa onde estava o M... Resultado: o J... servia os outros mas era impreterivelmente o último a ser servido naquela mesa. Às tantas, o “alfacinha” andava com a cabeça perdida!
Quando começou a Instrução Básica, fiquei com algum receio ao ver o camarada M... que fisicamente era muito bem constituído e também outros colegas, todos eles mais fortes do que eu. Pensei com os meus botões: “estou bem tramado” no meio destes gigantes! Mais tarde, no decurso da formação fiquei mais tranquilo quando vi o M... a andar e não a correr … porque infelizmente tinha os pés chatos! Era um tipo “porreiro”.
Findo o período da Instrução Básica, realizou-se a tradicional cerimónia do Juramento da Bandeira diante da Basílica de Mafra ao fundo da escadaria, sob uma intensa e impiedosa chuva, deixando em nós uma recordação bem amarga e inesquecível. Mais de 700 cadetes fardados e em formatura completamente encharcados até ao tutano!
Após a Instrução Básica, fomos todos gozar umas curtas férias. Pouco depois, entrou-se na fase seguinte da formação - a Especialidade - em que cada um ia adquirir em locais diferentes do País conhecimentos específicos duma determinada área nas diversas Armas. Escolhido para a Arma da Infantaria, continuei em formação em Mafra por mais três meses, juntamente com centenas de camaradas do mesmo Curso que apenas terminou no verão de 1968, com a realização dos exercícios finais em que o grupo onde eu estava inserido subiu o rio Tejo nas primeiras horas da manhã em barcos de desembarque desde o Cais da Ribeira das Naus (situado defronte ao Terreiro do Paço em Lisboa) até algures perto de Santarém onde ficámos acampados enquanto outros grupos eram aerotransportados ou por via terrestre para os seus arredores numa acção simulada que durou uma semana. Helicópteros voavam pelos ares na subida do rio.
(cont. na próxima Edição)
de que tinha de estar em Portugal em princípios de Outubro num determinado quartel situado na Ajuda, Lisboa, a fim de participar no COM (Curso de Oficial Miliciano), ministrado em Mafra. Acto contínuo, recebi a competente Guia de Marcha.
Intimamente, tanto eu como a minha família sabíamos de antemão o resultado da convocação ao referido Comando. Quando regressei à casa, a minha família recebeu a esperada notícia com alguma naturalidade, notando-se embora algum nervosismo e preocupação, principalmente da parte da minha querida mãe que já tinha visto partir há bem pouco tempo a Anabela, minha irmã, para Lisboa a fim de prosseguir os seus estudos na Universidade de Lisboa.
Segui sozinho em princípios de Outubro para Lisboa, via Hong Kong. Na antiga Ponte-cais do Porto Exterior estiveram amigos, colegas de trabalho e até amigos dos meus pais. Até então não conhecia as emoções provocadas por uma despedida “a sério” que poderia, na pior das hipóteses, ser a última de Macau.
Iniciava então a minha segunda viagem a Portugal que tinha visitado em 1964 na companhia do Alfredo Ritchie (médico reformado e hoje meu cunhado) para estarmos presentes como representantes de Macau num Encontro organizado pela Mocidade Portuguesa, com a participação de jovens de todo o antigo Ultramar. Data dessa altura a 1ª oportunidade de percorrer o País em dois meses.
Apresentado no quartel da Ajuda, segui no mesmo dia de comboio para Mafra, concretamente para as traseiras da sua majestosa Basílica, onde ficava a EPI (Escola Prática de Infantaria), que passou desde então a ser a minha casa durante os próximos seis meses de instrução militar: sensivelmente três meses de instrução básica e outros três destinados à especialidade. Lembro-me sobremaneira dos fins de semana que então passava na Ericeira, Amadora e Lisboa.
O mundo é realmente pequeno. Passados poucos dias e para grande espanto meu, cruzei-me em Mafra com o conterrâneo Henrique Nolasco da Silva (“Ricky”). Maior ainda foi o nosso espanto quando soubemos que estávamos integrados na mesma Companhia embora em Pelotões diferentes. Foi ele o 1º macaense que encontrei na minha vida militar. Mais tarde, outros dois apareceram quando menos esperava. Mas essa é outra história.
Durante a estadia na EPI, aprendemos um pouco de tudo: desde conhecimentos militares e sobrevivência até à condução de homens, sem esquecer os exercícios físicos que exigiam de nós aturados esforços e sacrifícios.
Hoje, as recordações são mais que muitas. Depois do pequeno almoço, nos dias de semana reunimo-nos em aulas teóricas e práticas na Escola e nos seus arredores, especialmente na enorme Tapada de Mafra onde se situavam a “Aldeia dos Macacos” (para exercícios físicos) e a carreira de tiro – armas ligeiras e pesadas. As quase intermináveis marchas e os longos “crosses” que fazíamos muitas vezes em condições meteorológicas adversas com uma arma ao ombro que ora era uma Mauser ora uma G-3, e com uma munição real na câmara nos exercícios finais. Os “passeios” diurnos e sobretudo os nocturnos que começavam quando éramos acordados subitamente por uma ordem transmitida por um alto-falante e tínhamos de nos apresentar minutos depois devidamente equipados e armados num certo local para sermos transportados em viaturas militares e largados em sítios desconhecidos apenas com um mapa e uma bússola, com a indicação de que nos queriam ver à hora do pequeno almoço no quartel, passeios esses realizados por estradas, montes e vales na região de Mafra-Torres Vedras. O rigoroso inverno vivido em Mafra, a humidade que cobria as espessas paredes do Quartel, a água fria (para não dizer, gelada) que de repente saía das torneiras quando todo ensaboado se estava no banho... etc. Coincidências? Nós, pobres cadetes, tínhamos noção de que tudo o que sucedia não era por acaso mas fazia parte da nossa formação, sujeitando-nos a todo o tipo de provações e de que isso contribuía na nossa mentalização para situações inesperadas e bem piores num teatro de operações militares em algumas (antigas) províncias ultramarinas, como Angola, Moçambique e Guiné. Como era natural, os cadetes provinham de diversas zonas do País, não se conheciam anteriormente e tinham formação académica/comportamentos diferentes. Mas porque todos nós “estávamos no mesmo barco”, passámos com o tempo a criar muito naturalmente uma sâ camaradagem, ajudando-se mutuamente nas tarefas colectivas. Daí nasceu até uma certa amizade entre muitos, tão visível na hora da despedida.
Casos dignos de registo:
Entre os meus camaradas, encontrava-se um, de apelido R..., que curiosamente tinha feições orientais. Era tratado entre nós como o “Vietcong”. Ele não se ralava com o facto e jurava a pés juntos que não sabia porque tinha “aquela cara” e que tanto quanto sabia nunca tivera na sua família alguém de ascendência oriental. Partiu a coronha duma Mauser num dos nossos “devaneios nocturnos” quando tentava saltar um muro de pedras no meio da escuridão da noite.
Um outro camarada, de nome J..., lisboeta, com ares de filho de gente fina, era vítima preferencial das nossas brincadeiras. Na caserna, nunca encontrava a sua cama em condições para nela se deitar: ou porque os lençóis estavam dobrados a meio entre a cama e os cobertores, o que não lhe permitia estender os pés, não tinha cobertores ou fronhas ou ainda ambos, ou tinha sal ou açúcar entre os lençóis e cobertores, etc. Para ele, ir para a cama foi sempre um pesadelo! No fundo, ele sabia que não havia maldade nem má intenção nessas partidas e até certo ponto aceitava ser o “bobo da festa”.
Havia ainda um outro, de apelido M..., de Coimbra, muito brincalhão e que tinha sido campeão nacional na categoria de juniores, se bem me recordo em lançamento de peso. Era o chefe que arquitectava as partidas para “chagar” o mencionado camarada J. Na sala das refeições, sentavam-se oito cadetes em cada mesa rectangular. Diariamente, um dos cadetes estava de serviço: servia os restantes num determinado sentido da mesa, antes de se servir. Acontece, porém que, por força da ordem numérica atribuída a cada um de nós, ao J... ( “o menino bonito”) calhou ficar na mesma mesa onde estava o M... Resultado: o J... servia os outros mas era impreterivelmente o último a ser servido naquela mesa. Às tantas, o “alfacinha” andava com a cabeça perdida!
Quando começou a Instrução Básica, fiquei com algum receio ao ver o camarada M... que fisicamente era muito bem constituído e também outros colegas, todos eles mais fortes do que eu. Pensei com os meus botões: “estou bem tramado” no meio destes gigantes! Mais tarde, no decurso da formação fiquei mais tranquilo quando vi o M... a andar e não a correr … porque infelizmente tinha os pés chatos! Era um tipo “porreiro”.
Findo o período da Instrução Básica, realizou-se a tradicional cerimónia do Juramento da Bandeira diante da Basílica de Mafra ao fundo da escadaria, sob uma intensa e impiedosa chuva, deixando em nós uma recordação bem amarga e inesquecível. Mais de 700 cadetes fardados e em formatura completamente encharcados até ao tutano!
Após a Instrução Básica, fomos todos gozar umas curtas férias. Pouco depois, entrou-se na fase seguinte da formação - a Especialidade - em que cada um ia adquirir em locais diferentes do País conhecimentos específicos duma determinada área nas diversas Armas. Escolhido para a Arma da Infantaria, continuei em formação em Mafra por mais três meses, juntamente com centenas de camaradas do mesmo Curso que apenas terminou no verão de 1968, com a realização dos exercícios finais em que o grupo onde eu estava inserido subiu o rio Tejo nas primeiras horas da manhã em barcos de desembarque desde o Cais da Ribeira das Naus (situado defronte ao Terreiro do Paço em Lisboa) até algures perto de Santarém onde ficámos acampados enquanto outros grupos eram aerotransportados ou por via terrestre para os seus arredores numa acção simulada que durou uma semana. Helicópteros voavam pelos ares na subida do rio.
(cont. na próxima Edição)
1 comentário:
Ficamos à espera da parte 2! :)
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