Vamos a isso João!
PCBMag - Quando recebeste a notícia de que foste mobilizado para Macau ficaste entusiasmado?
JPD - É uma pergunta curiosa, e vai ter uma resposta curiosa.
Quando eu estava à espera de ir para a guerra, muito mal preparado e sem coragem para o fazer, no dia de carnaval do ano de 1969, eis que um amigo meu, veio ter comigo, quase que não respirava e disse-me "João vais para Macau". Eu só lhe respondi “ hoje é dia de carnaval e nessa não caio”, mas era de verdade. Como é óbvio fiquei deslumbrado.
PCBMag - Que idade é que tinhas quando foste prestar o serviço militar em Macau? Foste de avião ou de barco?
JPD - Saí de barco no paquete Timor no dia 22 de Abril de 1969, no dia do meu aniversário, que bela prenda que eu tive.
PCBMag - Tinhas alguma noção de como era Macau?
JPD - Não tinha noção de nada, eu acho que nunca se tem noção de lugares que não conhecemos, fazemos um retrato na nossa cabeça, só que a realidade é sempre diferente, não havia internet, os telefones funcionavam a carvão, jornais controlados pelo regime salazarista, só sabia o que a minha professora me ensinou na escola.
PCBMag - Como foi a tua chegada a Macau e qual foi o teu 1º pensamento?
JPD - Cheguei a Macau no dia 9 de Junho, desembarquei no cais junto ao Macau Palace final da "somalô" (Av. Almeida Ribeiro), não me recordo do nome, um calor sufocante, pairava no ar um cheiro exótico, misto de terra, peixe e mar, era agradável só por ser em Macau, detestável se fosse em outro lugar qualquer. Já sabia umas palavras em chinês, pelo menos para sobreviver e não morrer à sede, que aprendi no barco que nos trazia de Hong-kong, "iát pui tong sóiá" (um copo de água fria) e "tsintao petchau taikó" (Cerveja Tsintao grande).
Lembro-me de cumprir um ritual que a minha querida mãe me pediu, pisa aquele lugar com o pé direito, é sinal que vais respeitar aquela gente que lá vive e pisei, ainda hoje o faço, noutros lugares que visito.
Lembro-me de que já era tarde, o sol já tinha desaparecido, tinha à minha espera os furriéis Castro e o Felisberto que me foram dar as boas vindas e me transportaram até ao quartel, fiquei alojado num quarto com mais três colegas em "axavan pinfon sete mei" (Quartel Mong Há - areia preta) as instalações, uma desilusão com poucas condições, fui tomar um duche, vejo na parede da casa de banho umas quatro osgas, para mim era impensável ficar ali, mas tive que ficar.
PCBMag - Conseguiste comer a comida chinesa?
JPD - Claro que sim tinha que ter sempre uns óculos muito escuros, para não ver certas coisas, mas gostava muito, isso é que é a essência da comida chinesa.
Das coisas que tenho saudade é da cozinha chinesa, deliciosa, todos os dias comia chao-min e na Maria Sebosa, uma tasca imunda que até os pés ficavam colados ao chão com tanta gordura, ficava depois da caixa escolar (Vai I), quando se ia para axavan (areia preta), da primeira vez que estive em Macau ainda procurei a tasca mas já não existia.
Há muitos outros pratos que adorava, o pato assado vendido na rua, numa perpendicular à Somalô (Av. Almeida Ribeiro), íamos comer o caranguejo frito naquelas frigideiras típicas, com muito piripiri, grandes tempos.
Se estivesse em Lisboa ainda frequentava o workshop para aprender a fazer chau-min.
PCBMag - Então como era o teu dia-a-dia lá em Macau depois do serviço?
JPD - Eu lembro-me de que os primeiros tempos foram complicados, 1969 fazia 20 anos da revolução cultural chinesa do MAO, tínhamos pouco espaço de manobra, não podia haver muita exposição na cidade porque éramos considerados "personas non gratas". Assim, almoçava na messe de sargentos, voltava para o quartel e à noite, quando a cidade se preparava para dormir íamos com alguma liberdade ao cinema, muitas vezes com o objectivo de desfrutar o ar condicionado, íamos ao MACAU PALACE cear, assistia aquele teatro chinês horrível que quase perfurava os tímpanos e daí para o quartel.
PCBMag - Quais os sítios que frequentavas?
JPD - O sítio preferido era o Waltzing Matilda, acho que se chamava assim, lembro-me que era bem frequentado e tinha um belo ar condicionado, por vezes jantávamos no restaurante do Hotel Estoril, mas fomos proibidos de lá entrar porque havia um furriel, bom rapaz, mas quando bebia a tal "petchau taikó" partia as mesas todas.
O fim de semana era na discoteca do mesmo hotel, que tinha sempre música ao vivo, bons conjuntos, que tocavam as músicas dos anos 60 que ainda hoje nos trazem belas recordações, como "Proud Mary" ,"The house of the rising sun" e fico por aqui. Havia o café RUBY em frente dos correios mas esse local não era do meu agrado, era demasiado burguês. No ano seguinte com a inauguração do hotel Lisboa, o grupo começou a frequentar o "coffeshop", sítio mais " IN" mais moderno e mais luxuoso.
PCBMag - Como conseguias falar com os locais quando ias fazer compras?
JPD - Havia sempre um professor que nos ensinava a dar os primeiros passos e as palavras necessárias à nossa sobrevivência. Depois os contactos com a população faziam o resto, todos sabíamos as palavras que não podiam ser ditas. Eramos jovens, cheios de vida, de garra e de força o que nos levava a procurar amigos, mesmo com o estigma de sermos militares, mas penso que tudo era ultrapassado.
O "professor" ensinou-me: quando quiseres pedir namoro dizes "GO OUTXONGUI NEI" (gosto muito de ti) TSINGTAO PETCHAU TAIKÓ (cerveja Tsingtao grande), YAT PUI TONG SÓI-A (um copo de água fresca), LOTXÉ (nos autocarros - Vou sair) essas são algumas expressões de que ainda hoje me lembro.
PCBMag - Macau marcou-te muito?
JPD - Muito! Eu estive em Macau quatro vezes, senti uma enorme nostalgia quando vi que muitos daqueles espaços já desapareceram, passei pelo destacamento (axavan pinfon sete mêi) ainda existem alguns barracões, mas tudo o resto desapareceu, o campo de futebol, nem sinais, monghá estava lá uma escola hoteleira, as portas do cerco ficaram diferentes, na ilha verde tudo degradado, o quartel general que era um sítio nobre, estava com umas oficinas vulgares, tive pena, mas o progresso é mesmo assim.
Macau tem uma particularidade, todos os dias são novos, nunca se sabe tudo de Macau, aqui reside o encanto dessa terra, há sempre coisas por descobrir e para aprender, eu lembro-me de que havia dias que queria fugir, e outros que queria ficar para sempre.
João Palinhas Duarte