TAK NG TAK - PÓDE NOM-PODE – MACAIZAÇÃO
Os Macaenses foram sempre exímios na adaptação às circunstâncias da sua vida, muitas vezes adversas ao que seriam desejáveis. Não me refiro apenas às condições impostas pelo quotidiano no estrangeiro, para onde emigraram. Poderia mencionar aqui vários exemplos de sucesso, demonstrando cabalmente essa capacidade de que acabo de falar, a qual é inerente à sua natureza. Reporto-me também à sua sua aptidão de se ajustar à sua própria terra.
É irónica a situação de ter também de se adaptar a Macau, terra em que nasceu o Macaense e em que provavelmente passará os seus últimos dias. Mas é um facto. Talvez porque a sua condição de mestiço, para além de conferir um cunho especial à sua presença secular em Macau, lhe coloca no limiar que separa dois mundos, ora pendendo para um, ora para o outro. O Macaense é a simbiose destes dois mundos, que sempre viveram paredes meias num território tão exíguo como a sua terra.
O seu contacto com chineses numa terra governada por portugueses granjeou-lhe formas de comunicação que se lhe tornaram próprias, ditadas muitas vezes pela necessidade pragmática de tradução de realidades que o seu vetusto e parco vocabulário não permitia. De facto, o Patuá, desde cedo condenado a ser língua do segundo plano, não tinha campo para melhor expansão e evolução natural. Porém, o Macaense contornou esse obstáculo. Sem trair a vertente linguística radicada no português, ele importou palavras, expressões idiomáticas, interjeições, simples formas de oralidade, oriundos de outras línguas. E fê-lo “macaizando-as”, tornando-as macaístas.
Foi um processo que, a meu ver, ocorreu a partir do início do século XX e que consistiu na tradução literal, total ou parcial, para o português, de palavras e de expressões que lhe são estranhas, conservando-se a semântica original. Não há nada de original nisso, pois corresponde a algo de comum a todos os povos que tiveram a experiencia colonial, em que era uma constante o contacto entre duas ou mais línguas, sendo uma a língua do Poder e outra a mais utilizada pela população. Em Macau este interessante processo foi crucial no prolongamento da Língu Maquista, tornando-a mais rica.
Não vou fazer uma lista exaustiva dos casos em que tal fenómeno aconteceu, nem tal seria possível.
Mas, vamos a alguns exemplos pitorescos.
a) Bafo-comprido.
Não existe no português padrão, pois “ar exalado que está prolongado” pouco sentido faz. Todavia a coisa muda de forma se associarmos à expressão cantonense CHEONG HEI (長氣), literalmente “COMPRIDO AR” que se emprega para referir a alguém que fala sem parar.
b) Sentâ
Sentar-se é uma das posições possíveis que escolhemos para repousar o nosso corpo, seja sobre uma cadeira, seja sobre um banco. Mas “sentâ-caréta” ou “sentâ-barco”, já nos deixam incomodados. Porém, é do cantonense que vem o seu sentido: CHÓ CHÉ (坐車) e CHÓ SUN (坐船), transportando-se de carro ou de barco, seguindo os passageiros, normalmente sentados.
c) Abrir/ fechar (Abrí/Fichâ)
Todos entendemos o que seja abrir e fechar uma porta, uma janela ou os olhos. Mas a luz, a água, ventoinha, ar condicionado ou a bola também? No cantonense a palavra HOI (開) abrange não só a noção de abrir, como também a de aceder, começar, inaugurar. Assim, ABRÍ LUZ (開燈) quando está escuro, ABRÍ ÁGUA (開水) para tomar banho ou ABRÍ VENTOINHA (開風扇) quando está quente. E também ABRÍ BOLA (開波), quando se assinala o começo de uma partida de futebol.
d) Nascer criança (Nacê quiança)
Há uma diferença que é óbvia na língua portuguesa, entre o dar à luz e o nascimento de uma criança. O Macaense também faz a mesma diferença, mas nos seguintes termos: “Quiança tá nacê” (a criança está a nascer) e “Ela tá nacê quiança” (ela está a dar à luz). Esta aparente confusão deixa de o ser se constatarmos que no cantonense SANG CHAI (生仔) (“NASCER” + “FILHO”) tem o significado de pôr uma criança no mundo.
e) Descarâ
Descaramento é sinónimo de falta de vergonha, de insolência, de torpeza. Quem é descarado, não tem cara, não tem pudor. Em Macau, acontece precisamente o contrário: o descarado é também desprovido de cara, todavia, no sentido de envergonhado, humilhado. Trata-se de uma importação do cantonense TIU MIN (丟臉) que significa “perder face”. Assim “Ele já discarâ iou” toma o sinónimo de “ele desfeiteou-me, humilhou-me”.
f) Tem hora que...
Trata-se de uma expressão comum entre macaenses, equivalente a “de vez em quando” e “às vezes”. A estranha construção macaense - que até seria incorrecta segundo a gramática portuguesa - teria sido adoptada do cantonense IAO SI (有時), (“TER” + “TEMPO/HORA”)
g) Amochai
Os diminutivos na Língua Portuguesa muitas vezes exprimem mais afecto que tamanho. É frequente alguém dizer “meu jardimzinho” querendo com isso referir-se ao seu mimado jardim. “Amorzinho” também se situa no mesmo contexto de afecto e respeita a uma pessoa ternamente amada. Em Macau, porém a mesma palavra sofre uma alteração interessante: o sufixo “zinho” é substituído por CHAI (FILHO 仔). Por conseguinte, AMOCHAI (“AMOR” + “CHAI 仔”) é uma bela fusão de duas palavras de origens diferentes que exprimem sublime afecto.
h) Vai-vem...
Construção frásica muito comum nas frases macaístas. O ir e vir exprimem movimento incessante de quem se encontra incomodado. Diz-se ANDÂ VAI ANDÂ VEM a quem, sem sossego anda de um lado para o outro. PENSÂ VAI PENSÂ VEM, fá-lo quem, desesperado não encontra solução para o problema que o apoquenta. MEXÊ VAI MEXÊ VEM é o irrequieto que mete a mão em tudo quanto é sítio sem encontrar aquilo que procura.
Trata-se de uma construção que deriva do cantonense 來 (嚟) VIR … 去 IR, com o mesmo modo de utilização. Assim, em correspondência ao que atrás escrevi, temos 行來行去 (HANG LOI HANG HOI), 想來想去 (SEONG LOI SEONG HOI).
Esses são alguns de muitos exemplos que podia citar para referir como a nossa língua foi moldada com o decorrer do tempo, em particular, com a introdução do elemento chinês. A “Macaização” foi um instrumento fundamental para a manutenção da língua a qual tinha de mostrar versatilidade suficiente para dar resposta aos novos desafios da sua utilização.
Não se pense que essa “macaização” tenha ocorrido apenas em relação ao cantonense.
O Macaense que se estabeleceu em Hong Kong teve que se adaptar às novas condições de vida imposta por uma cultura diferente. Todavia, não desistiu da sua lingua de origem ao aceitar o inglês por razões de sobrevivência. Antes, macaizou-o.
Falemos disto numa próxima oportunidade.
Sâm assi-ia! Miguel de Senna Fernandes