Apreensivo, pensei que a estadia de 48 horas teria sido encurtada para 24 horas e que o barco teria saído mais cedo, sem mim. Ao aproximar-me da borda do cais verifiquei que, para meu espanto, lá estava o "Timor" assente sobre o lodo. A maré na Beira tinha uma altura enorme, o que fez com que, na maré-baixa, o barco ficasse abaixo do cais. Ao embarcar, em vez de subir, desci as escadas para o "deck". Apenas a chaminé do navio se conseguia ver acima do cais.
Partimos para a parte mais crítica da viagem, a ligação entre Beira e Singapura, que iria durar cerca de 19 dias de navegação.
A ligação Beira-Singapura foi muito difícil, não só pelo número de dias de navegação, mas principalmente pelos sustos. Inicialmente apanhámos um mar que a tripulação chamava de "azeite", sem ondulação. Neste período entretínhamo-nos a observar os peixes voadores a sair da água e alguns até aterravam nos “decks” do barco. Depois veio o pior, quando fomos fustigados por uma tempestade tropical, um tufão. O barco parecia uma casca de noz. O mobiliário que não estava preso ao chão, andava por todo o lado. Cadeiras, mesas, pratos, tudo que não estivesse preso voava pelo ar. Perguntámos ao piloto se corríamos perigo e ele respondeu que enquanto a água não chegasse à chaminé estaria tudo bem. "À chaminé?! Quando lá chegasse já estaríamos no fundo!". A explicação do piloto não ajudou a tranquilizar o pessoal e para aumentar ainda mais a nossa preocupação aconteceu um episódio que viria a colocar todos em pânico. Encontrávamo-nos no bar, que ficava por baixo da ponte de comando, a jogar às cartas quando uma onda bateu com tal força que partiu a vigia e o bar ficou alagado. Os estilhaços e a água do mar que entraram por ali dentro provocaram ferimentos em alguns camaradas.
Colocar cerca de 400 homens confinados a um pequeno espaço e sem condições, mais tarde ou mais cedo iria dar problemas. Qualquer pequena questão dava logo motivo para andarem à bulha.
Estávamos a aproximar-nos de Singapura e tínhamos a expectativa de poder desembarcar. Alimentarmo-nos era a nossa prioridade, uma vez que a comida a bordo era intragável e a má disposição constante não ajudava. Nesta altura já tinha perdido cerca de 9 kg.
Para nossa desilusão as autoridades alfandegárias de Singapura não autorizaram o desembarque devido a problemas criados pela anterior passagem do "Timor". O comportamento do pessoal não tinha sido o melhor. Atracámos na última bóia do porto, devido aos explosivos a bordo, e ficámos a ver Singapura ao longe.
Ao aproximarmo-nos da nossa bóia para amarrar o barco avistámos uma quantidade enorme de barcos a motor a encostarem-se ao navio e a lançarem cordas para içarem para bordo uma autêntica feira ambulante. Havia de tudo, roupa, discos, gira-discos, mobílias chinesas, uma autêntica feira a bordo. Um dos camaradas comprou dois discos dos Beatles por USD$0,5. Assim que chegou a Macau e os pôs a tocar é que viu que de Beatles só tinha a capa, as músicas eram cantadas por chineses. Fartámo-nos de rir, era tudo falso.
Juntamente com estes barcos apareceram alguns que transportavam prostitutas. Esta situação foi um problema para a tripulação e para a chefia militar. Elas subiam pelas cordas e os tripulantes, com grandes mangueiras de água, corriam com elas. Foi uma carga de trabalhos para nós, Sargentos, conseguirmos controlar o pessoal.
Ao final do dia voltámos a zarpar, já com o barco reabastecido de água potável e alguns mantimentos a caminho de Hong-Kong.
Após dois ou três dias de navegação encontrávamo-nos junto do Vietname. Fomos sobrevoados em voo rasante, à hora do almoço, por dois caças Norte Americanos que se tornaram na nossa companhia durante dois dias. A guerra no Vietname estava no ponto mais alto e existia um bloqueio naval. Qualquer barco que passasse seria seguido e vigiado até entrar em águas internacionais. Serviu para quebrar a monotonia a bordo, uma vez que estávamos todos bastante mal psicologicamente, principalmente os que iam no porão. Existia a bordo a disciplina militar no seu pior sentido, não podia haver confraternização entre as várias patentes, Praças num lado, Sargentos no outro e Oficiais no topo.
Chegámos a Hong Kong a meio da tarde e fomos avisados que só desembarcaria o pessoal que ia para Macau, visto que a maioria ia para Timor.
Ao desembarcar do navio "Timor" senti ao mesmo tempo um alívio e uma satisfação enorme. A longa estadia a bordo tinha sido bastante desagradável, o melhor tinha sido a rota, tive a oportunidade única de ter ficado a conhecer cidades como Luanda, Lobito, Benguela, Lourenço Marques, Beira e um vislumbre de Singapura.
Quando embarquei em Lisboa nunca pensei que a viagem iria ser tão atribulada e nem que iria demorar 50 dias para chegar a Macau.
Embarquei no barco "SS Macau" já na recta final com destino a Macau. Este barco era bastante diferente do “Timor”, tinha ar condicionado, cadeiras de luxo, espectáculo de variedades e nesse dia até iria haver um show de "striptease". Era um barco de 5 estrelas.
Comprei um bilhete para o espectáculo, com direito a refeição, tudo por 50 escudos, cerca de 10 patacas. Durante o espectáculo foi servida como refeição "chau min", que para mim era novidade. Foi o meu primeiro contacto com os "faichi", que não dominava.
Finalmente, Macau. Atraquei no porto exterior por volta da meia-noite do dia 23 de Julho de 1970. Cinquenta dias após a minha partida de Lisboa.
Quando finalmente saí, após ter procedido a todas as formalidades, abri a porta e fui surpreendido com um bafo de ar quente e húmido. Olhei para terra, só via uma luz ao longe a tremelicar na escuridão. "Onde é que eu vim parar!".
Fui abordado por um oficial que trabalhava na rádio militar e fazia entrevistas aos recém-chegados para partilharem as suas primeiras impressões. As minhas primeiras palavras foram de total desagrado. Obviamente pediram-me que fizesse outro tipo de declaração, senão não a iriam poder transmitir.
Permaneci em Macau durante dois anos. Conheci alguns hábitos e costumes da terra, entre os quais aprender a jogar "mahjong".
Foram dois anos maravilhosos, tão bons que acabei por casar com uma filha da terra. Saudosos tempos da velha cidade Macau, à qual apenas regressei passados vinte e quatro anos.